Paternidade Biológica e Conversão em Socioafetiva
De acordo com o portal de transparência do site Registro Civil, entre janeiro e agosto de 2024, foram registrados 1.657.114 nascimentos, dos quais 112.675 ocorreram sem a presença do pai.
A ausência de filiação paterna no registro impede o indivíduo de acessar diversos direitos, como a escolha do nome, que não inclui os sobrenomes da família do pai, além de comprometer sua identidade pessoal, sua origem, o convívio familiar, e a possibilidade de ter dupla nacionalidade, quando aplicável. Ademais, essa omissão pode restringir o acesso a benefícios previdenciários, sucessórios, sociais, assim como a serviços de saúde e pensões alimentícias.
Para combater essa realidade preocupante, várias iniciativas, como a campanha Pai Presente promovida pelo Conselho Nacional de Justiça, têm sido implementadas em todo o Brasil. No período mencionado, contabilizaram-se 23.393 reconhecimentos de paternidade, sejam eles espontâneos ou por intermédio da justiça.
É comum observar que nos cartórios de registro civil de pessoas naturais há a realização de mandados para registrar judicialmente a paternidade reconhecida. Essa sentença pode resultar de uma ação investigatória iniciada pelo registrado, que pode ser feita com ou sem representação, ou por um terceiro que se considera o pai biológico. Nos casos em que já existe uma filiação paterna registrada na certidão de nascimento, geralmente, procede-se à sua exclusão.
Cancelamento de filiação
O cancelamento da filiação é um ato extremamente raro, geralmente resultante de uma decisão judicial que comprova a existência de um vício de vontade ou de consentimento por parte do registrante.
Portanto, mesmo em casos de ações negatórias de paternidade, onde um exame de DNA comprova a ausência do vínculo biológico, se não houver evidências de que o registro foi realizado devido a um erro ou falsidade (conforme o artigo 1.604 do Código Civil), a filiação pode permanecer válida, pois se trata de um ato juridicamente perfeito, irrevogável e irretratável.
Assim, se a pessoa tinha incertezas sobre a paternidade, não deveria ter se declarado como pai. Após a formalização do registro, não há espaço para arrependimento.
Por outro lado, observa-se que alguns juízes, ao decidirem sobre a inclusão da paternidade biológica, têm escolhido manter no registro de nascimento o pai registral como um pai afetivo.
Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Essa abordagem contrasta com a visão tradicional, que sustenta que, uma vez identificado o pai biológico, a figura que declarou a paternidade ao nascimento deve ser excluída. Isso ocorre independentemente de sua vontade, seja por ter assumido a responsabilidade como parceiro da mãe ou por ter sido levado a erro pela mãe da criança. Vale destacar que essa supressão acontece quando o genitor é adicionado ao registro, configurando uma verdadeira troca de paternidade.
Duas formas de parentalidade
A permanência da dupla parentalidade no registro implica na presença de um vínculo socioafetivo entre o pai registrado e o filho, mas isso não impede que também surja um outro tipo de afeto com o pai biológico. O princípio da afetividade se destaca nesse contexto. Contudo, a base dessa afirmação pode estar incorreta.
Isso se deve ao fato de que transformar o declarante em pai socioafetivo sem que esse pedido esteja explicitamente mencionado na petição inicial é, no mínimo, uma decisão além dos limites pedidos. Além disso, considere o caso de alguém que declarou a paternidade no cartório por ter sido enganado e só descobre não ser o pai biológico através de uma decisão judicial. É possível que tenha se desenvolvido um afeto tão intenso que supere a frustração causada pela revelação. Entretanto, não se pode assumir automaticamente que esse vínculo socioafetivo é verdadeiro ou que existe um desejo real de preservá-lo.
É imperioso que o declarante enganado seja ouvido e possa optar ou não pela paternidade socioafetiva. Até porque eventual distanciamento do registrado pode levar a acusação de alienação parental, abandono material etc.
Interesse do menor
Assim, o pai registral deve ser notificado para manifestar seu interesse em ser mantido como socioafetivo. Não é razoável que a declaração no momento do registro substitua o requerimento voluntário de paternidade socioafetiva e dispense a verificação do vínculo por elementos concretos conforme prevê a norma [1], até porque o contexto fático é completamente diferente: o declarante no cartório acredita ser o genitor; já o requerente da filiação socioafetiva sabe que não tem vínculo biológico, mas se considera pai.
No intuito de que prevaleça o interesse do menor e evitar traumas psicológicos, danos morais e materiais, somente se justifica a manutenção de dupla paternidade no registro de nascimento quando demonstrada a existência do vínculo socioafetivo e houver anuência do pai registral.
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