Boate Kiss: o caso, o processo e as polêmicas
Em 2013, o Brasil se chocou com a tragédia acontecida no Rio Grande do Sul, na boate Kiss. Na ocasião, um incêndio no local causou a morte de 242 jovens e outros 636 ficaram feridos. Com o aniversário de 10 anos do ocorrido, somado à publicação de um documentário e uma minissérie pelas plataformas de streaming Globo Play e Netflix, respectivamente, a discussão sobre o caso foi reacendida, junto à curiosidade das pessoas para entenderem melhor sobre o ocorrido e seu trâmite judicial polêmico.
Nesta matéria, trazemos um compilado do que você precisa saber sobre a fatalidade, seu processo e a repercussão dos últimos dias. Vamos juntos!
O Incêndio
Eram 02:30 da manhã do dia 27 de janeiro de 2013 quando o vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus, acendeu um artefato pirotécnico comprado pelo funcionário do grupo, Luciano Bonilha, durante seu show dentro da casa de festa Kiss, na cidade gaúcha Santa Maria. O item, que foi utilizado no ambiente interno, era projetado para uso externo, contendo pólvora.
A boate possuía um revestimento feito de material inflamável, o poliuretano, que, quando aquecido, libera gás cianídrico e monóxido de carbono, venenosos ao ser humano.
O resultado foi catastrófico. O ambiente, que carecia de diversos mecanismos de segurança, como saída de emergência e extintor de incêndio, foi palco do terceiro maior acidente em casa de shows do mundo, e o maior do Brasil. Muitas pessoas morreram carbonizadas, outras tantas, envenenadas pela inalação dos gases produzidos pelo queima do revestimento. Foram 242 vítimas fatais e 636 sobreviventes feridos.
Esse número, vale salientar, não corresponde ao total de pessoas que estavam no local. Acontece que a boate estava superlotada: apesar da capacidade máxima de menos de 800 pessoas, naquela madrugada ela contava com mais de 1000 no momento da tragédia.
Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, sócios proprietários da casa noturna, foram dois dos quatro réus apontados pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, junto aos já citados Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha, vocalista e funcionário da banda. Ao todo, eles foram acusados de dolo eventual pelos homicídios consumados e 636 tentativas de homicídio. A defesa alegou culpa consciente.
Em dezembro de 2021, os quatro foram condenados, em júri popular, pelos crimes pelos quais foram processados, de 18 a 22 anos de prisão em cárcere privado.
Todavia, em agosto de 2022, o julgamento foi anulado, por decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), por uma série de irregularidades que posteriormente serão elencadas.
As polêmicas
Após a investigação policial, foi concluído que 28 (vinte e oito) pessoas seriam responsáveis pela tragédia. Dentre eles, membros do Corpo de Bombeiros de Santa Maria, bem como da Prefeitura Municipal e até mesmo componentes do Ministério Público.
O fato é que o estabelecimento possuía muitas irregularidades que, se devidamente fiscalizadas, impossibilitariam que este permanecesse funcionando. Contudo, o MP optou por acusar apenas 4 (quatro) réus atuais. Todos os outros saíram impunes.
Qual a diferença entre dolo eventual e culpa consciente?
O Código Penal Brasileiro define os crimes dolosos contra a vida aqueles que são feitos com vontade de o fazer; os culposos, por outro lado, são consequências de negligência, imperícia e/ou imprudência.
Dessa maneira, o dolo eventual se trata de um crime cujo executor sabe da possibilidade do resultado e as desejam. A culpa consciente, por sua vez, acontece quando o executor sabe das consequências das suas ações, mas acredita que elas não acontecerão ou que podem ser evitadas, não as desejam.
Se, por um lado, suas definições são muito semelhantes, suas penas não acompanham tamanha paridade. Acontece que, no caso da culpa, a pena é de 1 (um) a 3 (três) anos de detenção. No dolo, ao mesmo tempo, a pena vai de 6 (seis) a 20 (vinte) anos de detenção.
Por que a defesa apostou nessa tese?
Como acabamos de ver, tudo depende do desejo de agir; da intenção propriamente dita. Dessa forma, é possível pontuar que três dos quatro réus estavam dentro da boate no momento do incêndio. Assim, a menos que os três estivessem pretendendo cometer suicídio – o que não há nada que leve a crer que eles almejassem -, segundo a defesa, não poderia haver vontade de praticar tal ato.
Esse ponto, então, passou a ser o alicerce argumentativo por parte dos advogados dos réus.
A anulação
Em agosto de 2022, a 2ª instância decidiu pela anulação do julgamento ocorrido em dezembro de 2021 em virtude de inconsistências que corroboraram com a decisão. Senão, vejamos:
1) O sorteio dos jurados não seguiu a exigência mínima legal: Na ocasião, realizaram 3 (três) sorteios de jurados. O último deles, todavia, foi feito 4 (quatro) dias úteis antes do julgamento, quando o Código de Processo Penal, em seu art. 433, parágrafo 1º, estipula que esse ato aconteça entre o 15º (décimo quinto) ao 10º (décimo) dia útil antes do julgamento.
2) O Ministério Público teve acesso ao sistema Consultas Integradas, coisa que não foi oportunizado à defesa, ferindo de morte o princípio da ampla defesa.
3) O juiz do caso conversou, de portas fechadas, com os jurados, sem a presença do Ministério Público ou da defesa dos réus. Esta conversa, inclusive, não possui vídeos, nem consta em ata.
4) Tempo mínimo para juntada de provas: O CPP define que os documentos a serem utilizados em júri devem ser juntados com uma antecedência mínima de 3 (três) dias úteis. O Ministério Público anexou uma maquete dentro deste prazo. Contudo, devido a complexidade do material, não houve a possibilidade da defesa ter acesso a este em tempo hábil.
A decisão, bem como todo o processo em si, é extremamente volumoso. Esses foram apenas alguns pontos arguidos pelos desembargadores. Veja o acórdão na íntegra.
Quais os próximos passos?
O processo está em fase recursal. Ou seja, a decisão do TJRS poderá ser mantida ou revogada, a pedido da acusação. No caso de mantimento da decisão dos desembargadores, a decisão do julgamento inicial é definitivamente anulada, e um novo júri deverá ser montado. No caso de revogação, a sentença proferida no final de 2021 é mantida, bem como suas consequências.
É importante lembrar que o prazo prescricional está rolando desde que a justiça decidiu o júri popular como julgamento aos réus. Dessa forma, quanto mais demora, mais há a possibilidade de o mérito ser sucumbido ao tempo prescricional.
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