“Ta tranquilo, ta favorável”: a desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC e a ética necessária na sua aplicação
Minha formação linguística e filosófica (sou filho de professores) sempre me exige o uso preciso e correto das palavras e dos institutos.
Assim, exorto a uma reflexão sobre o tipo de ética utilizada pelos juristas no incidente de desconsideração da personalidade jurídica no novo CPC (arts. 133 a 137). Trata-se de momento fecundo para prospectar as razões que movem o sistema a normatizar a "disregard theory", bem como o que se espera desse incidente no cotidiano forense: se aplicado com base em uma ética de princípios ou em uma ética contextual.
Gravei, inclusive, um vídeo no periscope na semana passada (disponível também na página do youtube) abordando a questão, ao qual já remeto o leitor para fixação da matéria.
Pois bem, a desconsideração nasceu da atuação da jurisprudência inglesa e ianque que viram nela uma possibilidade de coibir fraudes perpetradas por meio do uso de pessoas jurídicas. A "disregard doctrine", então, combate o abuso da personalidade jurídica, evitando confusões patrimoniais ou desvios de finalidade de empresas, com prejuízos a terceiros.
O art. 50 do CC/02 e o art. 28 do CDC previram, expressamente, a possibilidade de decretação da desconsideração para atacar abusos, estabelecendo requisitos específicos, uma vez que a regra geral (não pode ser diferente) é a separação entre empresa e sócio. Não dispuseram, contudo, sobre o procedimento para a desconsideração – o que veio a ser atendido pelo CPC/15.
Ser empresário em nosso país não é ilícito, nem pode ser. Apesar de garantida a livre iniciativa e a livre concorrência (CF, art. 170), a alta carga tributária, os riscos econômicos e as incertezas inflacionárias inibem a atividade empresarial ou sacrificam empresas de pequeno ou médio portes – o que, por vias transversas, aumenta o desemprego e diminui a circulação de riquezas. Nesse cenário, a segurança (garantia mínima) do empresário é a separação entre o seu patrimônio e o da empresa. Nesse ponto, tem morada o aspecto estimulador da empresarialidade.
O novo incidente de desconsideração, antenado nessas prerrogativas mínimas, exige, democraticamente, a formação do contraditório prévio à desconsideração como meio de garantir ao sócio da empresa (ou administrador que praticou o ato abusivo) o SAGRADO DIREITO DE DEFESA, inclusive de produzir provas. São os direitos constitucionais operando em sua mais pura essência!
Atingir o patrimônio pessoal do sócio por dívida da empresa sem oportunizar defesa revela um desestímulo à atividade, com significativas perdas econômicas e sociais, além de despótica e arbitrária! Chega a me lembrar o dramático relato de FRANZ KAFKA, em O Processo, no qual personagem Joseph K é preso, processado e condenado sem sequer saber o motivo da acusação. E morre, sem saber….
Aqui está o nó górdio a ser desatado: muitos juízes (na Justiça do Trabalho e nos Juizados, em maior escala), e juristas de escol entendem que a citação do sócio da empresa (ou do administrador) seria desnecessária porque ele integra a pessoa jurídica e tem ciência da demanda. Também partem da premissa de que, de má fé, ele esvaziará o seu patrimônio, frustrando a execução. É a subversão da lógica: presume-se a má-fé….
De todo modo, acredito que esse pensamento objetivista e simplista é bem intencionado. Acredito nessa boa intenção. Quem assim se posiciona está preocupado em garantir o crédito (muita vez, da parte mais fraca), impedindo que um inescrupuloso devedor frustre a execução, fraudulentamente, usando a pessoa jurídica. Sem dúvida, uma boa intenção! O problema é que se mostra despótica, autoritária, quase fazendo justiça com as próprias mãos… Quase um Robin Hood jurídico! Talvez, possamos dizer, aqui, que de boa intenção, o mármore arde.
Garantias constitucionais são pétreas! Pedra, rocha!! Não dá para sacrificar, sob pena de periclitar o sistema como um todo.
Com o novo CPC, nenhum juiz (nem do Trabalho!) poderá decretar a desconsideração de ofício e sem a formação do incidente, necessário para respeitar garantias CONSTITUCIONAIS! É o que se espera num ambiente democrático e cidadão!
Não se tente dizer que, na Justiça do Trabalho ou nos Juizados, a informalidade, a celeridade e a possibilidade de execução de ofício justificam solução diversa. Não! A desconsideração tem procedimento próprio, não integrante de uma execução. Não é incidente executivo, mas do processo como um todo!
A questão me parece ética. Explico: os filósofos afirmam a existência de dois diferentes tipos de ética: a que nasce da análise de situações estáticas, que não podem ser alteradas, sob pena de comprometer um sistema inteiro, à qual se dá o nome de ÉTICA DE PRINCÍPIOS; e a que brota da contemplação de situações mutantes, cambiantes, de casos concretos e episódicos, que ganha o nome de ÉTICA CONTEXTUAL.
Historicamente, a desconsideração esteve submetida a uma ética contextual. O juiz, a depender do caso, desconsiderava a empresa, justificando (para si, para sua consciência, para o mundo, para Deus, se acreditasse…) que o fez, de ofício e sem contraditório, pelo bem, para garantir o crédito de alguém que precisava muito. Assim, qual Robin Hood, garantiu com suas próprias mãos o sentimento de justiça – ainda que sacrificando garantias de outrem. Mais ou menos como o médico que visita um paciente desenganado, sem chance de cura, mas, indagado por ele se ficará bom, não tem coragem de dizer a verdade, pela emoção que o toca. É a ética contextual.
A nova desconsideração precisa ser tratada pelo prisma da ética de princípios! Um princípio invariável, garantista para todos: ampla defesa e contraditório, como mecanismo constitucional de cidadania! Não se pode presumir a má-fé, não se pode comprometer direitos fundamentais. Esta é intenção do novo incidente da desconsideração: respeito à democracia e fomento a um futuro mais garantista.
E não se lastime (principalmente os advogados dos credores), pensando que o devedor inescrupuloso vai prejudicar uma execução. O sistema não proibiu o uso da inteligência e da interpretação racional e teleológica; apenas obstou o despotismo – são coisas bem diferentes. E como a inteligência é notável, quase afrodisíaca, nada impede que o juiz, PROVOCADO pelo interessado ou pelo MP, se valha de medidas cautelares (CPC, art. 300 e ss) com vistas a garantir a execução futura. Pode determinar, cautelarmente, bloqueio de dinheiro, proibição de transferência de automóveis ou imóveis… Enfim, acautelar o processo, enquanto forma o contraditório, respeitando as garantias constitucionais. Nota-se: NÃO há prejuízo para a efetividade do processo, apenas não são mais toleradas arbitrariedades.
Com inteligência e estudo, os interesses dos credores podem ser assegurados sem violação das garantias dos devedores. Um simples exercício de ética de princípios – que se mostra mais democrática e recomendável ao caso.
Tratei da matéria, com mais verticalidade, na nova edição do vol.1 – Parte Geral, do nosso CURSO DE DIREITO CIVIL.
E rogo a todos, encarecidamente, que repliquem esse texto para seus amigos e parentes que lidam na Justiça do Trabalho e Juizados (juízes, serventuários, advogados…) para que reflitam sobre o assunto e não se arvorem por usar a inteligência (que também pode prestar serviços indevidos) para negar a aplicação do novo incidente, criando teses de ética contextual. Se assim for, incorreremos na advertência do Leopardi, na literatura italiana, ao dizer que, às vezes, é preciso mudar os móveis de lugar para que tudo fique como sempre foi.
No dia 19 de maio, a Proteção Jurídica dos Direitos da Personalidade será tema de Mesa Redonda no 5º Congresso Jurídico Online Multidisciplinar. O encontro conta com a participação do mestre em Direito Marcos Ehrhardt Jr, a mestra em Família na Contemporânea Fernanda Barretto e o mestre e professor Cristiano Sobral.
O Direito está em constante mudança e seus impactos nas esferas jurídicas e sociais devem ser acompanhadas de perto. A partir de temas multidisciplinares controversos e atualizações recentes no campo do Direito Previdenciário, Direito e Processo Civil, Direito e Processo do Trabalho, o 5º Congresso Jurídico Online reúne renomados juristas em um encontro interativo e gratuito.
O evento acontece entre os dias 18 e 20 de maio, exclusivamente online. As inscrições são gratuitas.
Para se aprofundar:
CURSO DE ATUALIZAÇÃO EM DIREITO PROCESSUAL CIVIL – O NOVO CPC – PROF. FERNANDO GAJARDONI (DISCIPLINA ISOLADA)
CURSO INTENSIVO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO E MAGISTRATURA ESTADUAIS
CURSO PREPARATÓRIO PARA CARREIRA JURÍDICA – MÓDULOS I E II
Especialização em Direito Civil