Saiba mais sobre: Direito de Superfície
Curioso perceber que o direito de superfície já obteve regramento no Brasil, à época anterior ao Código Civil de 1916. Recorda Carlos Roberto Gonçalves[1] que quando vigia no Brasil a legislação do reino de Portugal, havia disciplina sobre o instituto. Com o Código Civil de 1916, porém, o direito de superfície deixou de ser contemplado legalmente em terras tupiniquins, retomando o Código Civil de 2002 o prestígio do tema. Arremata o autor que o tema hoje (superfície) é regulado na Itália (CC, arts. 952/956), na Alemanha (arts. 1012 a 1017), na Suíça (CC, arts. 675 e 779), na Holanda (CC, 758 e 766), entre outros importantes países, sempre com a finalidade de permitir a construção ou plantação em terreno alheio[2].
Trata-se de um direito real na coisa alheia de uso e fruição, que está disciplinado em dois diplomas jurídicos: (a) no Estatuto da Cidade, Lei Federal nº 10.257/2001, arts. 21 a 24 e (b) No Código Civil, arts. 1269/1377.
Na forma do art. 1369 do CC, o proprietário está autorizado a conceder a outrem o direito de construir ou plantar em seu terreno, por determinado tempo, mediante escritura pública devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis. A hipótese é típica de uma propriedade resolúvel (CC, art. 1359). Torna-se possível com este direito real de uso e fruição na coisa alheia a construção ou plantação mediante concessão realizada em benefício do superficiário.
O Estatuto das Cidades (Lei Federal nº 10.257/01) em seu art. 21 também disciplina o direito de superfície, com uma importante diferenciação para o Código Civil, qual seja: a possibilidade de constituição da superfície por tempo indeterminado.
“É a superfície, portanto, o direito real pela qual o proprietário concede, por tempo determinado ou indeterminado, gratuita ou onerosamente, a outrem o direito de construir, ou plantar em seu terreno urbano ou rural, mediante escritura pública, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis”. A lição é de Maria Helena Diniz[3]. Há, destarte, exploração da terra por sujeito de direito que não é proprietário da mesma.
Prossegue Flávio Tartuce[4] conceituando o instituto nos seguintes termos: “A superfície é o instituto real pelo qual o proprietário concede a outrem, por tempo determinado ou indeterminado, gratuita ou onerosamente, o direito de construir ou plantar em seu terreno. Tal direito real de gozo ou fruição recai sempre sobre bens imóveis, mediante escritura pública, devidamente registrada no Cartório de Registro de Imóveis”. Recorda o ilustre civilista ser este o mais abrangente direito real de gozo e fruição, envolvendo o proprietário (fundieiro) e o superficiário[5].
Questão interessante é saber se o direito de superfície compreenderia o espaço aéreo e o subsolo.
Para Carlos Roberto Gonçalves,[6] em que pese a omissão normativa a este respeito o superficiário poderá utilizar do espaço aéreo, “uma vez que constitui ele parte integrante do solo, como expressamente enunciava o art. 43, I do Código Civil de 1916”[7] (correspondente ao art. 1.229 do Código Civil vigente). O mesmo raciocínio, por consequência, aplicar-se-á ao subsolo; recordando-se que apenas é possível o uso do espaço aéreo e subsolo úteis ao exercício da propriedade.
Obviamente que o uso deste espaço aéreo e do subsolo não se presumem na concessão da superfície, havendo de estar expressos no seu objeto. Isto é o que prescreve o parágrafo único do art. 1.369 do CC. No mesmo sentido caminha o Enunciado 568 do Conselho da Justiça Federal, ao firmar que o direito de superfície abrange a utilização não apenas do solo, mas do subsolo ou do espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, admitindo-se o direito de sobrelevação, atendida a legislação urbanística. Este entendimento se coaduna com a previsão específica do direito de superfície do Estatuto das Cidades.
No que concerne ao uso do subsolo, ressalte-se que o próprio art. 20, IX da Carta Magna, aliado ao art. 1.230 do Código Civil, impedirá a utilização dos recursos minerais, que de rigor pertencem à União. Logo, a propriedade do solo não abrange as jazidas, minas e demais recursos minerais, muito menos os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos em lei especial; razão pela qual jamais será possível admitir esta prerrogativa de fruição ao direito de superfície.
Na forma do art. 1473 do CC e do Enunciado 249 do Conselho da Justiça Federal esta mesma propriedade superficiária poderá ser simultaneamente objeto de outro direito real na coisa alheia, a exemplo de uma hipoteca do próprio direito superficiário. Concordamos com isto, até porque não se trata de relação jurídica intuito personae e inalienável, razão pela qual será viável a transmissão do direito de superfície a terceiros (CC, 1372).
Maria Helena Diniz[8] realiza interessante reflexão ao advertir que o direito de superfície efetivamente constitui “exceção ao princípio de que o acessório acompanha o principal, pois a lei concede ao superficiário um direito real sobre construção ou plantação feita em terreno alheio, utilizando sua superfície”, aspecto que afasta a acessão, ou melhor, a ideia segundo a qual “tudo que se acrescenta ao solo deverá pertencer ao seu proprietário (superfícies solo cedit)”.
Segundo Carlos Roberto Gonçalves[9] o direito de superfície poderá ser constituído por escritura pública, por carta de sentença ou por testamento; havendo ainda quem sustente a possibilidade de aquisição pela via da usucapião[10]. Em todos estes casos, este título deverá ser registrado no cartório de imóveis, a teor do art. 1277 do CC “Os direitos reais sobre imóveis constituídos ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1245 a 1247), salvo os casos expressos em lei”.
Constituído o direito de superfície, surgirá no caso concreto um conjunto de obrigações e direitos próprios da construção ou da plantação, autônomos e distintos do terreno em si, de modo que responderão cada um dos seus titulares exclusivamente por suas próprias dívidas e obrigações, ressalvadas as de natureza tributária, na melhor forma do Enunciado 321 do Conselho da Justiça Federal.
Esta divisão entre dois blocos de patrimônios jurídicos decorrente da constituição do direito de superfície enseja uma série de efeitos interessantes, como o direito do superficiário e do proprietário à indenização oriunda de eventual desapropriação, bem como o supletivo dever de pagamento dos respectivos tributos sobre a propriedade superficiária na proporção da parte do imóvel objeto do gozo e fruição (§3º, art. 21 do Estatuto da Cidade), havendo nítida independência da superfície.
Este direito de superfície poderá ser concedido onerosamente, ou mesmo de forma gratuita, de acordo com a autonomia privada do proprietário. De fato, o proprietário poderá usar e dispor da coisa como lhe aprouver (CC, arts. 1228 e 1370).
Nota-se que existirá necessariamente um contrato disciplinando as partes e o objeto desta concessão da superfície. O pagamento de eventual contraprestação é doutrinariamente chamado de cânon ou solarium, podendo se realizar de uma só vez ou parceladamente.
Mas e se o contrato for silente sobre a questão da onerosidade ou gratuidade?
Acaso neste pacto as partes sejam silentes sobre a onerosidade, na forma dos arts. 112 e 114 do CC, deve-se admitir a modalidade gratuita para o uso da superfície. De qualquer modo, “O superficiário responderá pelos encargos e tributos que incidem sobre o imóvel” (CC, art. 1371).
Seguindo no regramento do tema, o legislador civilista trabalha com o direito de preferência, também denominado de preempção ou mesmo de prelação legal (CC, art. 1.373). Trata-se de um regramento recíproco, pois aplicável tanto ao proprietário como ao superficiário. Ambos, portanto, na hipótese de alienação terão o direito de exercitar sua preferência tanto por tanto – nas mesmas condições de pagamento de preço – consolidando a propriedade de forma plena (solo, construção e/ou plantação). Assim, desejando o proprietário alienar o bem, preferirá o superficiário; e se este intentar alienar a superfície, preferirá o proprietário.
Nessa toada, no momento da alienação o alienante haverá de notificar ao outro para que este, então, tenha a prerrogativa de exercitar, ou não, o seu direito de preferência, tanto por tanto. Curioso perceber que a norma é omissa quanto ao prazo, ou mesmo a forma de se implementar este direito de preferência. Recorda Flávio Tartuce[11] da existência de três correntes doutrinárias:
Corrente 1 – a inobservância do direito de preferência ensejaria apenas direito à reparação civil, aplicando-se por analogia o art. 518 do CC. Ante a omissão normativa, seria utilizado o recurso da analogia (LINDB, art. 4º) e aplicado os arts. 513 a 520 do CC. Neste sentido Silvio de Salvo Venosa, Mário Luiz Delgado, Pablo Stolze e Jones Figueiredo.
Corrente 2 – A analogia deveria ser com o art. 33 da Lei do Inquilinato (Lei Federal nº 8.245/91). Logo, quando do desrespeito à preferência surgiria ao interessado a alternativa de reaver o bem para si, depositando o preço e demais despesas do ato de transferência, desde que o direito de superfície estivesse registrado há pelo menos trinta dias e o exercício do direito pelo prejudicado se desse em até seis meses. Caso não mais houvesse interesse ao preterido de reaver o bem para si, o mesmo art. 33 da Lei do Inquilinato lhe autoriza o pedido de perdas e danos. Este é o entendimento de Maria Helena Diniz e Marco Aurélio Bezerra de Melo.
Corrente 3 – Seria o caso de se aplicar o art. 504 do CC: utilizar o direito de preferência disciplinado no condomínio para, com isto, permitir no prazo decadencial de 180 (cento e oitenta dias) para o ajuizamento de ação de adjudicação. Defendem esta ideia Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald, Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes.
A segunda tese vem ganhando ares de majoritária, como bem posto no Enunciado 510 do Conselho da Justiça Federal: “Ao superficiário que não foi previamente notificado pelo proprietário para exercer o direito de preferência previsto no art. 1373 do CC é assegurado o direito de, no prazo de seis meses, contado do registro da alienação, adjudicar para si o bem mediante depósito do preço”.
O que acontece caso o superficiário confira destinação diversa da entabulada no direito de superfície?
Configurará um ato ilícito apto a possibilitar a antecipada resolução do direito de superfície (CC, art. 1.374). Extinta a concessão – por este ou qualquer outro motivo – o proprietário passará a ter a propriedade plena sobre o terreno, construção ou mesmo plantação, independentemente de indenização, se as partes não houverem estipulado coisa distinta no contrato (CC, 1375). Lembre-se que a Lei de Registros Públicos, em seu art. 167, II, 20, exige a averbação do término deste direito real de superfície no cartório de registro imobiliário.
E se houver desapropriação?
Em havendo uma desapropriação, o direito de superfície, por via de consequência, será extinto. Neste caso, o art. 1.376 do CC prevê cabível indenização tanto ao proprietário do terreno, quanto ao superficiário “no valor correspondente ao direito real de cada um”. Sobre este assunto foi elaborado o Enunciado 322 do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual “O momento da desapropriação e as condições da concessão superficiária serão considerados para fins da divisão do montante indenizatório (art. 1376, CC), constituindo-se litisconsórcio passivo necessário simples entre proprietário e superficiário”.
Já que adentramos na seara do direito administrativo, urge aclarar que “O direito de superfície, constituído por pessoa jurídica de direito público interno, rege-se por este Código, no que não for diversamente disciplinado por lei especial”, na melhor forma do art. 1.377 do CC.
É caberá usucapião entre superficiário e proprietário?
Evidentemente que não, na medida em que o uso e a fruição do terreno se dará sem animus domini, requisito essencial à prescrição aquisitiva.
Por fim, recorda-se que o direito de superfície será extinto: com o vencimento de seu termo, para o caso de se ter um ajuste por tempo determinado; por descumprimento das obrigações assumidas (hipótese de resolução pela prática de ato ilícito); resilição unilateral (denúncia vazia) ou bilateral (distrato); causas gerais de extinção dos negócios jurídicos, tais quais a consolidação, o perecimento, a desapropriação, etc.
Para se aprofundar:
CURSO DE DIREITO CIVIL (PARTE ESPECIAL) – "COMEÇANDO DO ZERO" 2015 – PROF. ROBERTO FIGUEIREDO (DISCIPLINA ISOLADA)
CURSO INTENSIVO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO E MAGISTRATURA ESTADUAIS
CURSO PREPARATÓRIO PARA CARREIRA JURÍDICA – MÓDULOS I E II
[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 443.
[2] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 443.
[3] DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2011, p. 390.
[4] Tartuce, Flávio. Direito das Coisas. 6ª Edição. São Paulo: Método, 2014. p. 333.
[5] Observe que o conceito ministrado pelo ilustre professor Flávio Tartuce envolve a superfície por tempo indeterminado, o que evidencia a posição doutrinária deste pela permanência no ordenamento jurídico da disciplina prevista no Estatuto das Cidades.
[6] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 443.
[7] Eis o conteúdo do artigo 43, I do CC/16: “São bens imóveis o solo com a sua superfície, os seus acessórios e adjacências naturais, compreendendo as árvores, os frutos pendentes, o espaço aéreo e o subsolo”.
[8] DINIZ, Maria Helena. Direitos das Coisas. 26ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2011, p. 493.
[9] GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito das Coisas. 5ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 448.
[10] Curiosamente, o Código Civil Português admite de modo expresso a aquisição do direito de superfície pela usucapião, conforme art. 1.528: “O direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento ou usucapião, e pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes, separadamente da propriedade do solo”.
[11] Tartuce, Flávio. Direito das Coisas. 6ª Edição. São Paulo: Método, 2014. p. 341.