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O crime de estupro de vulnerável e o Estatuto da Pessoa com Deficiência

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Publicado em 06/05/2016, às 19:24

A entrada em vigor do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/15) promoveu extensa alteração no tratamento dispensado pela lei à pessoa que padece de impedimentos de natureza física, mental, intelectual ou sensorial. Como exemplo, temos a revogação dos incisos do art. 3º do Código Civil, que antes considerava absolutamente incapaz aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tivesse o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil. Atualmente, o indivíduo que, por causa transitória ou permanente, não puder exprimir sua vontade é tratado como relativamente incapaz (art. 4º, inciso III).

Isso ocorre sobretudo por influência do art. 6º da Lei nº 13.146/15, segundo o qual a deficiência não “afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: I – casar-se e constituir união estável; II – exercer direitos sexuais e reprodutivos (destacamos); III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”.

No campo penal, a entrada em vigor do Estatuto tem suscitado dúvidas a respeito da influência do disposto no inciso II acima transcrito na caracterização do crime de estupro de vulnerável, especificamente no caso do § 1º do art. 217-A do Código Penal, que pune a conduta de praticar conjunção carnal ou outro ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato. A dúvida é a seguinte: se o deficiente é plenamente capaz para “exercer direitos sexuais e reprodutivos”, qual a razão para rotulá-lo como vulnerável e, portanto, incapaz de consentir para o ato sexual? Existe uma contradição entre os documentos legais?

Esse conflito é meramente aparente.

Para dirimir a dúvida, façamos uma análise do tipo do art. 217-A no que concerne aos sujeitos passivos, não por acaso separados entre o caput e o § 1º:

1) o menor de quatorze anos: Antes da entrada em vigor da Lei nº 12.015/09, o Código Penal considerava, pelo disposto art. 224, presumivelmente violenta a relação sexual com menor de quatorze anos. Havia, então, extenso debate a respeito da natureza da presunção, isto é, se relativa ou absoluta. Uma primeira corrente sustentava a necessidade de apurar, concretamente, a incapacidade do menor para o consentimento, enquanto outra, majoritária, defendia a aplicação absoluta da regra relativa à idade.

Com a edição da Lei nº 12.015/09, revogou-se o art. 224 do Código Penal e a regra da presunção de violência deixou de ser aplicada. A mesma lei incluiu no Código o art. 217-A, que, sem mencionar presunção de nenhuma ordem, pune, no caput, a conduta de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de quatorze anos.

A clara disposição legal, no entanto, não foi capaz de impedir a continuidade do debate a respeito da presunção, agora de vulnerabilidade. Afirma, por exemplo, Guilherme de Souza Nucci: “Agora, subsumida na figura da vulnerabilidade, pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou relativa. Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática do ato sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade. Se durante anos debateu-se, no Brasil, o caráter da presunção de violência – se relativo ou absoluto –, sem consenso, a bem da verdade, não será a criação de novo tipo penal o elemento extraordinário a fechar as portas para a vida real” (Crimes contra a dignidade sexual, p. 37-38).

Prevalece, no entanto, tese diversa. Leciona a maioria da doutrina não haver espaço para discussão a respeito da presunção de vulnerabilidade, pois a lei nada presume. Sua redação é clara e inequívoca: proíbe-se a relação sexual com menor de quatorze anos. Foi este o manifesto propósito do legislador com a revogação do art. 224 – este sim expresso sobre a presunção de violência. Fosse para se perpetuar o debate, seria evidentemente desnecessária qualquer alteração. Tanto é assim que a justificação do projeto que originou a Lei nº 12.015/09 foi emitida nos seguintes termos:

“Esse artigo [217-A], que tipifica o estupro de vulneráveis, substitui o atual regime de presunção de violência contra criança ou adolescente menor de 14 anos, previsto no art. 224 do Código Penal. Apesar de poder a CPMI advogar que é absoluta a presunção de violência de que trata o art. 224, não é esse o entendimento em muitos julgados. O projeto de reforma do Código Penal, então, destaca a vulnerabilidade de certas pessoas, não somente crianças e adolescentes com idade até 14 anos, mas também a pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não possuir discernimento para a prática do ato sexual, e aquela que não pode, por qualquer motivo, oferecer resistência; e com essas pessoas considera como crime ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso; sem entrar no mérito da violência e sua presunção. Trata-se de objetividade fática” – grifamos.

E atendendo ao propósito da lei, o STJ firmou o entendimento no sentido de afastar pretensões para apurar concretamente a vulnerabilidade, como se extrai do seguinte julgado, exarado por sua Terceira Seção:

“Para a caracterização do crime de estupro de vulnerável previsto no art. 217-A, caput, do Código Penal, basta que o agente tenha conjunção carnal ou pratique qualquer ato libidinoso com pessoa menor de 14 anos; o consentimento da vítima, sua eventual experiência sexual anterior ou a existência de relacionamento amoroso entre o agente e a vítima não afastam a ocorrência do crime” (REsp 1.480.881/PI, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, DJe 10/9/2015).

2) aquele que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência: Esta situação, extraída do § 1º do art. 217-A, em tudo difere da anterior – daí porque dissemos não ter sido por acaso que o legislador cindiu o tipo penal entre o caput e o § 1º para tratar do sujeito passivo do crime.

Neste caso, assim como ocorria em relação ao menor de quatorze anos, o ordenamento antes da Lei 12.015/09, presumia a violência por meio do mesmo art. 224 do Código Penal.

Uma vez em vigor a referida Lei, o tipo do § 1º do art. 217-A passou a punir o ato de ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.

Iniciando pela última hipótese, em que a vítima não pode, por qualquer causa, oferecer resistência, podemos citar como exemplos a situação da pessoa que, embora não padeça de nenhuma anomalia mental, embriaga-se até a inconsciência e, inerte, é submetida ao ato sexual sem que possa resistir; ou da pessoa que é induzida, por meio de drogas, à inconsciência por alguém que tem o propósito de com ela manter relação sexual não consentida.

No caso do deficiente mental, não se pune a relação sexual pelo simples fato de ter sido praticada com alguém nesta condição, como ocorre no caso do menor de quatorze anos. Aqui, caracteriza-se o crime se o agente mantiver conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém que, em virtude de enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento. É imprescindível, portanto, ao contrário do que se verifica no caput, apurar concretamente se a pssoa portadora de enfermidade ou deficiência mental tinha ou não discernimento para a prática do ato.

Nessa linha, o Estatuto da Pessoa com Deficiência em nada interfere na caracterização do crime de estupro de vulnerável, pois desde a edição da Lei nº 12.015/09, em que a presunção de violência foi extirpada do nosso ordenamento jurídico, é necessário apurar se a enfermidade ou a deficiência mental de que padeça alguém ocasiona a falta de discernimento. As disposições do art. 6º do Estatuto podem servir para reforçar a indicação do Código Penal, mas não há mudança substancial na incidência do tipo. 

Para se aprofundar:

CURSO PREPARATÓRIO PARA CARREIRA JURÍDICA – MÓDULOS I E II

COMBO – CURSO INTENSIVO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO E MAGISTRATURA ESTADUAIS + MATÉRIAS COMPLEMENTARES ESTADUAIS + LEGISLAÇÃO PENAL ESPECIAL

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