Conceito, importância e função social das obrigações
Tanto “a obrigação, quanto o contrato assumem hoje o ponto central do Direito Privado, apontados por muitos como os institutos jurídicos mais importantes de todo o Direito Civil”, como sintetiza Flávio Tartuce[1]. Deste modo, é inegável a importância do instituto das obrigações enquanto base das relações civis.
Na prática forense, os operadores do direito inevitavelmente utilizam as obrigações em todos os ramos, especialmente nas relações econômicas, analisando estas como projeção da autonomia privada. Portanto, a realidade que se afigura presente revela que o mundo contemporâneo nos leva a uma miríade de obrigações diárias.
Mas, o que é uma obrigação?
Etimologicamente a expressão advém do latim, representada pelos termos Ob + Ligatio, expressando ligação, liame. Inicialmente, o conceito ligava-se a uma norma de submissão, o que hoje não é completamente verdadeiro, ao passo que se relaciona a um ato de vontade baseado na cooperação.
Juridicamente, a expressão obrigação é plurissignificativa, pois ao mesmo tempo em que traduz uma relação jurídica (sentido amplo), também quer dizer respeito ao que se deve propriamente, ao objeto do pagamento (débito – sentido estrito).
Justo por isto, Orlando Gomes informa significar a expressão obrigação, em sentido estrito, direito de crédito[2]. Interessante, porém, que preferimos mais corriqueiramente o uso da expressão que nos remete à situação passiva, falando-se em direito das obrigações, ao revés de direito de crédito. Ou seja, focamos mais no dever do que no direito.
O locus de estudo do direito obrigacional, acertadamente, deve ser logo na abertura da parte especial do Código Civil. Isto por influenciar a todos os demais livros. Em contratos, responsabilidade civil, reais, família e sucessões sempre há, mesmo que de forma implícita, uma relação jurídica obrigacional.
Enxerga-se a relação jurídica obrigacional como um processo. Assim, sua leitura deve ser feita a partir do paradigma de uma série de atos encadeados visando o adimplemento. A satisfação do credor e a dinâmica da relação obrigacional são premissas que orientam seu estudo, verificando-se a obrigação como um processo.
Nessa esteira de pensamento, lembra Judith Martins-Costa[3] que o direito das obrigações é construído dentro de um processo relacional contínuo de cooperação, devendo ser encarado como uma relação complexa “compreendendo uma série de deveres, situações jurídicas e obrigações”, voltados ao adimplemento. Infere-se a ideia de obrigação como um processo voltado ao cumprimento de um dever, como já lecionava Clóvis do Couto e Silva[4]. É um processo com atividades necessárias à satisfação dos interesses do credor.
Neste iter procedimental há deveres principais e anexos (acessórios, implícitos, satelitários) os quais perduram até após o pagamento, com a eficácia pós-objetiva da obrigação. São deveres ligados à boa-fé, sendo exemplos o de informar, cooperar, cuidado, zelo, etc. Por conseguinte, infere-se que as relações obrigacionais de tráfego jurídico não devem ser analisadas apenas sob o ponto de vista econômico, mas também consoante deveres não patrimoniais.
Além disto, sob a influência da sociabilidade, as relações obrigacionais transcendem o individual, ganhando conotações coletivas e difusas. Como lembra Lênio Streck[5], os problemas jurídicos não mais envolvem apenas Caio, Tício e Mévio, mas sim coletividades, comunidades, como invasões do MST, falência de Bancos, contratos massificados e etc.
Daí a afirmativa de Karl Larenz segundo a qual a obrigação deve ser enxergada sob o prisma da totalidade, e não apenas como uma situação passiva. É um processo, com diversos deveres de conduta, sendo verificados o credor e devedor em nítida cooperação para o adimplemento. Não há de se falar em antagonismo entre o credor e o devedor, mas sim em cooperação e busca do adimplemento.
Este processo obrigacional, que como visto é marcado por autonomia privada, boa-fé e função social, tem como etapas:
a) nascimento e desenvolvimento dos deveres
b) adimplemento
Há casos em que o cumprimento é instantâneo, o que dificulta a divisão em fases e a aproximação entre a situação real e obrigacional.
Outrossim, o processo em comento deve ser significado pela lente do ser. As situações patrimoniais são funcionalizadas à efetivação dos valores e princípios existenciais, sendo ultrapassada a fase liberal napoleônica do Direito Civil. Assim como proposto no volume de Parte Geral, aqui também, nas obrigações, é necessária a despatrimonialização do direito.
É certo afirmar, à guisa destas considerações, que o adimplemento é a mola propulsora das obrigações (as pessoas contratam para adimplirem). Portanto, o adimplemento é o eixo em torno do qual as obrigações são construídas no afã de atender a sua ínsita função social.
E qual o campo de incidência do direito obrigacional?
Não é qualquer obrigação em uma verificação coloquial, como aquelas decorrentes de religião ou domésticas… O seu campo de incidência é restrito, dizendo respeito às obrigações juridicamente exigíveis, perfeitas.
Com base no verificado, a doutrina é rica em conceitos obrigacionais precisos, como “complexo de normas que regem relações jurídicas de ordem patrimonial, que têm por objeto prestações de um sujeito em proveito de outrem”, no dizer de Clóvis Beviláqua[6].
Segundo Maria Helena Diniz[7] os direitos obrigacionais, ou creditórios, são relativos por se dirigirem a pessoas determinadas, não sendo erga omnes, encerrando uma prestação positiva ou negativa consubstanciada em dada conduta.
Já tivemos a oportunidade de conceituá-la como a relação prestacional de caráter patrimonial, cujo desrespeito se resolve mediante a execução do patrimônio penhorável do inadimplemente[8]. É o que afirma Washington de Barros Monteiro[9]: “é a relação jurídica, de caráter transitório, estabelecida entre devedor e credor e cujo objeto consiste numa prestação pessoal econômica, positiva ou negativa, devida pelo primeiro ao segundo, garantindo-lhe o adimplemento através de seu patrimônio”[10].
O descumprimento da obrigação, portanto, gera responsabilização patrimonial do devedor. Mas será que esta responsabilidade afeta todo o seu patrimônio?
Decerto que não. Mas tão-só do seu patrimônio penhorável. Afirma-se isto à vista dos limites constitucionais impostos pelo respeito à dignidade humana, valor maior, eixo em torno do qual todo o ordenamento jurídico há de ser compreendido. Há um mínimo existencial – estatuto jurídico do patrimônio mínimo – a proibir que o inadimplente seja ferido em sua dignidade. Recorda Luiz Edson Fachin[11] que todo ser, para ser humano, necessita de um mínimo existencial de dignidade, habitação, vestuário, lazer… Isto há de ser preservado!
A este respeito, o art. 649 do CPC trata da impenhorabilidade de certos bens jurídicos; a Lei 8.009/90 dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família e a súmula 364 do Superior Tribunal de Justiça estende a aplicação da impenhorabilidade do bem de família ao solteiro (single) e, ainda, as súmulas 25 do Supremo Tribunal Federal e 419 do Superior Tribunal de Justiça, ambas no sentido de não tolerar a prisão civil do depositário infiel. Isto apenas em algumas importantes notícias!
O art. 649, do CPC vigente, o qual dispõe de alguns bens impenhoráveis, no projeto do novo CPC (NCPC) está como art. 841. Registra-se que, uma vez sancionado o projeto, é possível que a ordem dos artigos não permaneça a mesma.
Sendo assim, a leitura do artigo 390 do Código Civil, ao informar que “Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor”, merece significado civil-constitucional. Sim. Pela lente do mínimo existencial é sabido que haverá mitigações a tal execução, como já enunciado. Esta também é a melhor forma de compreender a incidência dos arts. 389 e 390 do CC, os quais dispõem sobre a possibilidade de utilização do patrimônio do inadimplemente como hipótese de garantia obrigacional.
Mas, se a responsabilidade é patrimonial, como é possível falar-se em prisão civil?
A prisão civil, segundo o Supremo Tribunal Federal, apenas persiste no direito brasileiro em uma única hipótese: devedor de alimentos. Ainda assim, funciona como meio de coerção, e não como um substitutivo do pagamento. Logo, uma vez preso e em havendo o pagamento, o cidadão deve ser posto em liberdade. Porém, caso cumpra a prisão e não pague, segue a execução por quantia certa em face do devedor, pois não há quitação pelo cerceamento de liberdade.
O tema prisão civil será retomado em capítulo específico.
O inadimplemento obrigacional soluciona-se, tecnicamente, através da aplicação dos artigos 389 e 390 do CC, ou seja, mediante a teoria da responsabilidade civil negocial ou contratual. Insista-se: nos concursos públicos não se deve utilizar a teoria aquiliana da responsabilidade civil extracontratual; leia-se: não se deve utilizar dos artigos 186, 187 e 927 do CC para embasar postulações, sendo esta a “visão clássica de divisão dualista da responsabilidade civil em contratual e extracontratual”, nada obstante a tendência ser “a unificação do tema”, como adverte Flávio Tartuce[12].
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[1]. In Direito Civil. 4. ed. São Paulo: Editora Método, 2009, p. 27.
[2]. In Obrigações. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008. p. 6.
[3]. In Comentários ao Novo Código Civil. Coordenação Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2003. Volume V, Tomo I.
[4]. In Obrigações, 1976. Apud Flávio Tartuce. Op. Cit. p. 30.
[5]. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma Exploração Hermenêutica da Construção do Direito. 4. ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2003.
[6]. In Código Civil Comentado. Volume 4. ed. p. 6.
[7]. In Curso de Direito Civil Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 7.
[8]. Luciano Figueiredo e Roberto Figueiredo in Direito Civil. Coleção OAB. Volume 5. Editora JusPodivm, 2012, p. 116.
[9]. No mesmo sentido Álvaro Villaça Azevedo:“obrigação é a relação jurídica transitória de natureza econômica, pela qual o devedor fica vinculado ao credor, devendo cumprir determinada prestação positiva ou negativa, cujo inadimplemento enseja a este executar o patrimônio daquele para satisfação de seu interesse (Teoria…,2000, p. 31).
[10]. In Curso de Direito Civil – Obrigações. 1 Parte. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 8.
[11]. FACHIN, Luiz Edson. O Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[12]. In Direito Civil. 4. ed. São Paulo: Editora Método, 2009, p. 27.