A aplicação do Direito Civil e os desacordos morais razoáveis
Estabelecida a premente necessidade de interpretação do Direito Civil a partir das normas-regras e das normas-princípios, bem assim como o seu mecanismo de interpretação por meio da técnica de ponderação de interesses (quando necessário), é preciso advertir para a aplicação da norma nas hipóteses de desacordos morais razoáveis.
Com efeito, na sociedade hipercomplexa em que vivemos, com uma multiplicidade de situações conflituosas e com diferentes interesses surgindo a cada momento, é natural que se estabeleçam conflitos jurídicos das mais diferentes índoles. Situações jurídicas de direito privado persistentes e emergentes se misturam em um verdadeiro turbilhão de problemas a exigir uma solução do Poder Judiciário, por meio de interpretação das normas do Direito Civil – com primazia, por evidente, da norma constitucional.
São os chamados hard cases (casos difíceis), para os quais a norma não previu uma solução apriorística, impondo a busca de um resultado, a partir de atividade interpretativa. Invocando a lição oportuna de Ronald Dworkin, hard cases são aqueles não cobertos por uma regra clara e específica, a determinar a sua solução, ou seja, sem deixar claro como devem ser decididos.
Por conta de sua natureza e de suas peculiaridades, muitos desses conflitos apresentam um alto grau de moralidade subjacente, envolvendo aspectos muito pessoais, de conteúdo religioso, sexual, filosófico etc. Apresentam-se, nessa arquitetura, os chamados desacordos morais razoáveis. São aquelas matérias polêmicas, complexas, sobre questões emergentes ou persistentes, para as quais existe a possibilidade de admitir soluções antagônicas, diametralmente opostas, a partir de uma interpretação racional do próprio sistema jurídico. Ou seja, são posições divergentes inteiramente, porém constitucionalmente (juridicamente) legítimas, coexistindo no seio da sociedade.
Explica, com habitual lucidez, Luís Roberto Barroso:
“No mundo contemporâneo, nas sociedades plurais e complexas em que nós vivemos, pessoas esclarecidas e bem intencionadas pensam de maneira diferente
acerca de temas moralmente controvertidos. Não é difícil comprovar e ilustrar o argumento com situações envolvendo a) eutanásia e suicídio assistido; isto é, a existência ou não de um direito à morte digna; b) a questão da recusa de transfusão de sangue por pessoas adeptas da religião Testemunhas de Jeová; e c) o debate sobre a descriminalização das drogas leves”.
Para essas questões são admitidas, dentro da interpretação do próprio sistema
jurídico, soluções legítimas juridicamente, embora francamente contrapostas. A solução pela admissibilidade (pro choice), ou não (pro life), da legalização do aborto pode ser construída dentro do próprio sistema jurídico, com fundamentação razoável, em ambos os sentidos. Conflitos desse tipo carregam consigo, indubitavelmente, uma carga alta de moralidade, influenciada pelas ideias pré-concebidas do intérprete e da sua visão de mundo. E, como se nota, a maioria absoluta desses casos envolvem, direta ou indiretamente, relações privadas, perpassando os domínios do Direito Civil.
E é nesse cenário (rico e empolgante) que se impõe uma advertência. Para a solução de conflitos jurídicos, inclusive no campo do Direito Privado, somente é possível invocar os desacordos morais razoáveis quando existem valores constitucionais igualmente relevantes em conflito, a legitimar tanto uma tese favorável, quanto uma outra desfavorável. Mas, em nenhuma hipótese, é possível invocar a existência de um desacordo moral razoável para negar direitos a quem quer que seja. (DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, op. cit., p. 127).
Verticalizando um pouco mais, vem se emprestando a denominação para definir as situações para as quais “a dogmática não oferece solução unívoca imediata, dependendo de uma construção posterior, alicerçada em proposições que sejam juridicamente adequadas e admissíveis” (TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional brasileiro concretizado: hard cases e soluções juridicamente adequadas, op. cit., p. 51; BARROSO, Luís Roberto. O novo Direito Constitucional brasileiro. op. cit., p. 37. Cap. I – INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL)
Até mesmo porque não se pode sustentar juridicamente que alguém tenha reconhecido, em seu favor, o direito de negar direitos a outra pessoa! Com isso, não se pode tolerar a alegação de desacordo moral razoável para retirar de alguém o exercício de determinado direito fundamental ou interesse jurídico legítimo, por mais que aquela conduta seja repugnada pela maioria da sociedade. É o excelente exemplo da união familiar homoafetiva. Conquanto se trate uma posição minoritária, repugnada por setores específicos da sociedade, não se pode negar o exercício de direitos fundamentais.
O Supremo Tribunal Federal tem discutido a matéria em instigante caso (STF, Tribunal Pleno, RE 845.779/SC, rel. Min. Luís Roberto Barroso), envolvendo o tratamento social (inclusive, uso de banheiros) dispensado aos transexuais. No caso, uma pessoa transexual foi expulsa do banheiro feminino de um shopping center, em Santa Catarina, de forma vexatória e humilhante. Por conta da situação, a pessoa terminou por dar cabo às suas necessidades fisiológicas em sua própria roupa, sem acesso ao banheiro, e ainda tendo de voltar para casa de transporte público. Por tudo isso, requereu indenização por danos morais, que foi indeferida pelo Tribunal local, ao argumento de que houve “mero dissabor”. Culto e sensível, o Ministro Luís Roberto Barroso, exercendo a relatoria do julgamento, expôs que a verdadeira igualdade se expressa em dimensões material, formal e como forma de reconhecimento próprio.
Com isso, afirma que a ”igualdade como reconhecimento objetiva inibir violência que não tem natureza legal nem econômica, mas cultural ou simbólica”, deferindo, assim, o pedido reparatório formulado. O Ministro Luiz Fux, por seu turno, pediu vistas do processo, para discutir o que ele considera um desacordo moral razoável existente na sociedade sobre o tema. Nesse caso, porém, não se pode alegar a tese do desacordo moral razoável. Isso porque, como assinalado, não se tolera a invocação do argumento citado para negar a alguém direitos fundamentais. Admitir uma deliberação majoritária sobre temas assim significaria, em última análise, reconhecer subcategorias jurídicas de pessoas humanas, hierarquizando pessoas e grupos sociais e retirando da minoria o direito de se autodeterminar, pelo despotismo e tirania da maioria.
Em síntese apertada, porém clara: não se pode invocar a existência de desacordo moral razoável quando uma das teorias filosóficas impõe a negativa de direitos ou de interesses a outro grupo, ou pessoa.
Trecho retirado do livro: Curso de Direito Civil: Parte Geral e LINDB, 14ª ed. Salvador: JusPodivm, 2016, vol.1. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson.
Para se aprofundar:
CURSO INTENSIVO PARA O MINISTÉRIO PÚBLICO E MAGISTRATURA ESTADUAIS
CURSO PREPARATÓRIO PARA CARREIRA JURÍDICA – MÓDULOS I E II
ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO CIVIL