Leonardo Martins, professor de Direito Constitucional da Pós-graduação Estácio, em parceria tecnológica com o CERS, explorou o tema das “Manifestações populares entre normalidade democrática e insurreição”. Confira o ensaio completo:
As manifestações populares das últimas semanas surpreenderam positivamente. Essenciais para oxigenar o sistema democrático representativo, em certo sentido elas são instrumentos de democracia direta: ainda que não imediatamente deliberativas, podem ter o condão de suscitar propostas de projetos de lei. Trata-se da necessidade/oportunidade dos representantes (mandatários) do povo ouvirem seus mandantes. Isso se torna ainda mais premente em perigosos tempos de ceticismo em face dos partidos políticos. Em uma democracia saudável, são os partidos os catalisadores dos difusos anseios dos eleitores em uma agenda e linha programáticas suficientemente claras e conhecidas. Estas deveriam determinar o sucesso de candidatos no processo eleitoral e não o marketing político.
Mas manifestações espontâneas de tamanho vulto podem implicar questionamento da vigente ordem constitucional em si. Em tal ambiente, colocam-se em xeque os fundamentos da organização política e constitucional. Perscrutar se tais desafiadores questionamentos ainda podem ser entendidos dentro da normalidade democrática e a partir de que momento eles são um prenúncio pré-revolucionário motivado por déficits estruturais de legitimidade no exercício do poder político não é fácil. Aqui se tenta um primeiro esboço de reflexão.
A normalidade democrática no contexto do Estado Constitucional
A CF usa uma linguagem inequívoca ao fixar claro parâmetro para a avaliação jurídico-constitucional dos fatos em apreço, em seu art. 5°, XVI: “Todos podem reunir-se pacificamente e sem armas (…)”. As reuniões “em locais abertos ao público” podem tomar a forma de passeatas. Podem ser realizadas “independentemente de autorização”: uma salvaguarda até redundante do constituinte.
As ressalvas da condição de não frustração de “outra reunião convocada para o mesmo local” e a “exigência” de “prévio aviso à autoridade competente” representam limites que só poderão ser aplicados pelo Executivo e Judiciário após atuação legislativa. Esta também terá que ser avaliada quanto a sua proporcionalidade, caso se queira defender a supremacia da norma constitucional em face do legislador ordinário.
Trata-se de um direito de resistência contra intervenções estatais provenientes do exercício das três funções, a começar pela legislativa, mas alcançando o poder de polícia do Estado e a interpretação/aplicação de normas infraconstitucionais pelo Judiciário. O art. 5°, XVI CF abrange, entre outros, o direito de livremente escolher o local da manifestação e todas as formas de expressão comunicativa que visem a lhe dar o máximo de visibilidade social, excetuando-se o emprego de violência.
Ainda não existem claros critérios para a delimitação entre reuniões protegidas constitucionalmente (pacíficas e sem armas) e aquelas não protegidas por não cumprirem esse pré-requisito firmado pelo constituinte. O legislador ordinário, representante e mandatário de seus eleitores, é o responsável para estabelecer tais critérios ao cabo de um amplo e substancial debate com seus mandantes.
Mas não basta. Certo é que o exercício do direito fundamental choca-se com outros direitos individuais e coletivos de índole constitucional, o que pode justificar pontuais e proporcionais intervenções. Aqui também o legislador é chamado a atuar, deixando um mínimo de margem discricionária às demais “autoridades competentes”, principalmente às polícias e ao Judiciário.
Não somente os flagrantes excessos policiais, também a decisão de comandantes de impedirem o livre trânsito de manifestantes à Paulista, no primeiro dia das manifestações convocadas pelo MPL, representam per se violações do art. 5°, XVI da CF.
Por outro lado, as prisões por danos perpetrados ao patrimônio público e particular são lícitas por não serem abarcadas pelo art. 5°, XVI da CF. O Estado deve, obviamente, prestar segurança tanto aos manifestantes quanto a terceiros, contra a ação de vândalos ou criminosos infiltrados.
Passando a fronteira: “direito” à insurreição?
Declarações como “as manifestações são legítimas” são despiciendas na normalidade democrática. Não carece de legitimidade a ser reconhecida ad hoc aquilo que o constituinte assegurou em face de todos os órgãos estatais. Para efeitos de sua admissibilidade, não se precisa julgar o mérito das reuniões com suas eventuais reivindicações. No mais, como direito fundamental, a liberdade de reunião atende também a desideratos de minorias e, assim, a todo o espectro político ideológico, pelo menos até o limite da “democracia militante” (que se autodefende contra tendências radicais à direita ou à esquerda); limite este, todavia, difícil de ser concretamente aferido.
Porém, estamos caminhando sobre uma “fina camada de gelo” com uma crescente falta de legitimidade no exercício dos poderes, tamanho o descaso de seus titulares em relação à defesa engajada da ordem constitucional. Tal defesa deve ser demonstrada mediante atos compatíveis com CF e não mensagens de marketing político.
Em um ambiente político de pré-caos, de descontrole generalizado do qual ficamos – ou ainda estamos – desconfortavelmente próximos, ocorrem vandalismos despropositados e vandalismos autocompreendidos por grupos radicais como instrumento político. No que tange aos últimos, a resposta do Estado não pode ser tão somente proporcionalmente repressiva; como também discursivo-persuasiva e inclusiva. Primeiro porque histórica e atualmente os grupos radicais à esquerda sempre sofreram mais repressão, sendo tradicionalmente mais marginalizados e provocados à insurreição. É o grupo ideológico “mais vulnerável” que deve ser convencido da legitimidade da ordem constitucional vigente, que é plural e tolerante. O argumento de seus representantes de que foram primeiro provocados pelo establishment político e pelas polícias, em que pesem algumas veleidades pueris, tem que ser levado a sério; suas reivindicações e propostas cuidadosamente analisadas e não desmerecidas de plano.
Quanto ao mérito da questão-estopim dos protestos: mobilidade urbana é um dos principais pressupostos de uma sociedade mais humana, mais justa e de um meio-ambiente mais equilibrado, dentre outros valores agregados. Se a tarifa zero com um transporte público de qualidade é uma utopia ou alcançável com intensa reengenharia tributária e financeira, isso tem que ser discutido à exaustão. Esse ônus de argumentação cabe agora aos parlamentares e governantes.
Única forma dos titulares das funções estatais lidarem com a ameaça ao Estado Constitucional, que parte de radicais e de massas revoltosas, é cumprindo seus respectivos deveres consoantes suas competências e responsabilidades. Nesse sentido, é de bom alvitre que o legislador comece criando protocolos rígidos para a atuação policial. Esta deveria ser toda pautada na legislação específica. É lícito prender e processar os vândalos, mas também é ordenado que o Estado apure as responsabilidades administrativas e penais, do policial que extrapolou os limites do estrito cumprimento do dever legal até a chefia de governo. Ao Estado é vedado promover as infelizes atividades de ataque preventivo. Deve ao contrário instruir e procurar incentivar o exercício da liberdade de reunião.
A defesa da ordem constitucional vigente que está sim periclitante começa, portanto, com uma atitude oficial: deixar de escarnecer a opinião pública e ter real “vontade de Constituição” (Hesse).
Este ensaio foi publicado originalmente publicado no dia 02 de julho de 2013, no Jornal Carta Forense.
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