Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria de votos, decidiu que em se tratando de ação de indenização por extravio de bagagem em viagens internacionais, devem ser aplicadas as convenções internacionais prevalecendo sobre os ditames do Código de Defesa do Consumidor. A decisão diz respeito ao julgamento conjunto do RE n. 636331 e ARE n. 766.618, que os conflitos que envolvem extravios de bagagem e prazos prescricionais ligados à relação de consumo em transporte aéreo internacional de passageiros devem ser resolvidos pelas regras estabelecidas pelas convenções internacionais sobre a matéria, ratificadas pelo Brasil.
O RE n. 636.331, de relatoria do Min. Gilmar Mendes, foi ajuizado no STF pela Air France contra acórdão do TJRJ que, entendeu pela existência de relação de consumo entre as partes, determinando que a reparação pelo extravio de bagagem deveria ocorrer nos termos do CDC, e não segundo a Convenção de Varsóvia, seguindo entendimento pacificado pelo STJ. No que concerne ao ARE n. 766.618, que tem por relator o Min. Luís Roberto Barroso, foi interposto pela empresa Air Canadá contra acórdão do TJSP, que aplicou a lei consumerista, mantendo a condenação da empresa ao pagamento de R$ 6 mil a título de indenização por danos morais a uma passageira, por atraso de 12 horas em voo internacional. A empresa pedia a reforma da decisão, alegando que o prazo de prescrição de ação de responsabilidade civil decorrente de atraso de voo internacional deveria seguir os parâmetros da Convenção de Montreal, sucessora da Convenção de Varsóvia, que é de dois anos, e não do CDC, cuja prescrição é quinquenal.
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Histórico
Em 2014, os relatores haviam votado pela prevalência das convenções internacionais. Segundo o Min. Gilmar Mendes, o preceito de Defesa do Consumidor não é o único mandamento constitucional que deve ser analisado no caso e a Constituição prevê a observância aos acordos internacionais. O Min. Barroso entendeu no mesmo sentido, observando que o art. 178 da CF/88 estabelece que “a lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade”. Na ocasião, os votos foram acompanhados pelo Min. Teori Zavascki, no entanto, o julgamento foi suspenso a pedido da Min.ª Rosa Weber.
Após emanar o seu recente voto-vista concluiu o julgamento das demandas acompanhando os relatores pela prevalência, nos dois casos, das Convenções de Varsóvia e de Montreal sobre o Código de Defesa do Consumidor, tendo por fundamento legal o art. 178 da CF/88, às quais se confere status supralegal, de acordo com entendimento jurisprudencial do Supremo, salientou, por sua vez, que seu voto se restringia a danos materiais decorrentes de casos de extravio de bagagens e de prescrição, sendo as citadas convenções compatíveis com a CF/88.
Restaram vencidos os Min. Marco Aurélio e Min. Celso de Mello, que entenderam pelo desprovimento dos recursos, já que os casos em análise envolviam empresas de transporte aéreo internacional de passageiros, que realizam atividades qualificadas como prestação de serviços e por isso estaria configurada uma relação jurídica de consumo, à qual aplica-se o CDC, lei superveniente às citadas convenções.
Assim ficou aprovada a seguinte tese: “por força do artigo 178 da Constituição Federal, as normas e tratados internacionais limitadoras da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor”. Resta mencionar que foi reconhecida a repercussão geral e a decisão deverá tal entendimento do STF apenas vale para voos internacionais, portanto, o transporte aéreo nacional submete-se às leis brasileiras. Abaixo citamos o tema de repercussão geral e a decisão:
Tema 210 – Limitação de indenizações por danos decorrentes de extravio de bagagem com fundamento na Convenção de Varsóvia.
Decisão: O Tribunal, apreciando o tema 210 da repercussão geral, por maioria e nos termos do voto do Relator, vencidos os Ministros Marco Aurélio e Celso de Mello, deu provimento ao recurso extraordinário, para reduzir o valor da condenação por danos materiais, limitando-o ao patamar estabelecido no art. 22 da Convenção de Varsóvia, com as modificações efetuadas pelos acordos internacionais posteriores. Em seguida, o Tribunal fixou a seguinte tese: "Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor", vencido o Ministro Marco Aurélio. Não votou o Ministro Alexandre de Moraes, por suceder o Ministro Teori Zavascki, que votara em assentada anterior. Presidiu o julgamento a Ministra Cármen Lúcia. Plenário, 25.5.2017. RE n. 636.331, Rel. Min. Gilmar Mendes.
Críticas
Tal tese merece críticas veementes. Entendo que tal decisão fere frontalmente os direitos do consumidor e o CDC já que a prevalência das convenções internacionais em matéria de indenização por falha no serviço beneficia as empresas aéreas em detrimento do consumidor que claramente é a parte mais vulnerável desta relação, que não resta dúvidas é de consumo. O Código de Defesa do Consumido é matéria de ordem pública, de interesse social e tem respaldo constitucional, trazendo punições mais severas contra as companhias e mais benéficas aos passageiros.
As regras internacionais, mais especificamente as convenções de Varsóvia e de Montreal foram ratificadas pelo Brasil e são normas específicas para os voos, diferentemente do CDC, que é de caráter geral, todavia, no que concerne às relações de consumo, estas devem ser interpretadas em benefício do consumidor lesado e não é isso que ocorre, já que as normas internacionais são tarifárias e trazem limites às indenizações pelos prejuízos causados pelas empresas aos passageiros. O CDC por sua vez, tendo por objetivo a defesa e proteção dos direitos do consumidor não traz limites ao valor a ser reparado, bastando que o passageiro comprove o que perdeu para receber de volta, seja por perda ou danos de suas malas ou por atraso no embarque ou desembarque. Arrisca-se dessa forma, a não reparação integral pelos danos sofridos pelo consumidor.
Outro ponto extremamente relevante e que também vem em desfavor ao consumidor com esta decisão advinda do Supremo se refere ao prazo prescricional para a propositura da ação indenizatória: nas regras internacionais, tal prazo é de 2 anos a contar da chegada do voo ao local de destino ou que deveria chegar, enquanto o CDC traz o prazo prescricional de 5 anos contados da data do conhecimento do prejuízo e de sua autoria. Ou seja, com a aplicação das regras internacionais, o tempo que o consumidor teria para pleitear a indenização por extravio de sua bagagem sofreu uma redução de 3 anos, o que compromete em muito o exercício do direito do consumidor em ver seus prejuízos indenizados.
Junte-se a isso que o Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou diversas vezes acerca do tema e possui entendimento pacificado e reiterado de que apesar da Convenção de Varsóvia e a Convenção de Montreal tratar de limitação de indenização em caso de perda/extravio de bagagem ou atraso de voo em viagens internacionais, após o advento do CDC, não prevalece mais a tarifação limitada em respeito ao direito básico da reparação integral dos danos, conforme dispõe seu o art. 6º, VI: “São direitos básicos do consumidor: […] VI – a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos.”
Ementas
Sobre o tema citamos ementas que trataram da matéria:
Responsabilidade civil. Ação regressiva. Transporte aéreo. Extravio de mercadoria. Inaplicabilidade da convenção de Varsóvia. Relação de consumo. Incidência do Código de Defesa do Consumidor. Indenização ampla. Orientação da tribunal. Recurso provido. Nos casos de extravio de mercadoria ocorrido durante o transporte aéreo, há relação de consumo entre as partes, devendo a reparação, assim, ser integral, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, e não mais limitada pela legislação especial (REsp n. 257.298/SP, rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, j. em 03.05.2001, DJ,
11.06.2001, p. 229).
Indenização. Extravio. Bagagem. Transporte aéreo. A Turma entendeu que o transportador aéreo responde pelo extravio de bagagem ou carga, aplicando-se as regras do Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11/9/1990) quando o evento ocorreu na sua vigência, afastando-se a indenização tarifada prevista na Convenção de Varsóvia. Precedente citado: EREsp 269.353-SP, DJ 17/6/2002. REsp 538.685-RO, Rel. Min. Barros Monteiro, julgado em 25/11/2003. (Inf. 193)
Entendimeto do tribunal
Mais recentemente, o Tribunal da Cidadania reitera entendimento pacificado acerca do tema:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRANSPORTE AÉREO. EXTRAVIO DE BAGAGEM. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC/1.973. INEXISTÊNCIA. OFENSA AOS ARTS. 165 E 458, II, DO CPC/1.973. NÃO OCORRÊNCIA. CÓDIGO DE BRASILEIRO DE AERONÁUTICA E CONVENÇÃO DE VARSÓRIA. INAPLICABILIDADE. INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. PRECEDENTES. DANO MORAL. REVISÃO. SÚMULA 7/STJ. RECURSO NÃO PROVIDO.
1 – Inexiste violação do artigo 535 do CPC/1.973 quando, embora rejeitados os embargos de declaração, a matéria em exame foi devidamente enfrentada pelo Tribunal de origem, que emitiu pronunciamento de forma fundamentada, ainda que em sentido contrário à pretensão da parte recorrente. 2. Não há ofensa ao arts. 165 e 458, II, do CPC/1.973, pois a Corte local apreciou a lide, discutindo e dirimindo as questões fáticas que lhes foram submetidas. O teor do acórdão recorrido resulta do exercício lógico, ficando mantida a pertinência entre os fundamentos e a conclusão. 3. O Superior Tribunal de Justiça possui o entendimento no sentido de que a responsabilidade civil das companhias aéreas por extravio de bagagem, após o advento da Lei n. 8.078/90, não é mais regulado pela Convenção de Varsóvia e suas posteriores alterações (Convenção de Haia e Montreal), tampouco pelo Código Brasileiro de Aeronáutica, aplicando-se, em tais casos, o Código de Defesa do Consumidor. 4. O acolhimento da pretensão recursal sobre a ausência de abalo moral demandaria o revolvimento da matéria fático-probatória, o que atrai a aplicação do óbice da Súmula 7/STJ. 5. Agravo interno não provido. (AgInt no AREsp 874.427/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/10/2016, DJe 07/10/2016) (grifos nossos)
Precedentes no mesmo sentido: AgRg no AgRg no AREsp 527.050/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 01/09/2016, DJe 08/09/2016; AgRg no AREsp 661.046/RJ, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 17/09/2015, DJe 24/09/2015; AgRg no AREsp 409.045/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/05/2015, DJe 29/05/2015; AgRg no AREsp 582.541/RS, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 23/10/2014, DJe 24/11/2014, entre outros.
Sobre Cristiano Sobral
Cristiano Sobral é doutorando em Direito. Professor de Direito Civil e Direito do Consumidor na FGV, na Associação do Ministério Público do Rio de Janeiro, na Fundação Escola da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, no Complexo de Ensino Renato Saraiva e na Fundação Escola do Ministério Público do Rio de Janeiro. Professor universitário, palestrante e autor de diversas obras jurídicas.
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