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Lavagem de dinheiro e o tratamento penal do “pitufeo” ou “smurfing”

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Publicado em 01/07/2016, às 09:33

Partindo do conceito de lavagem de dinheiro como sendo "um processo tendente a obter a aplicação em atividades econômicas lícitas, de uma massa patrimonial derivada de qualquer gênero de condutas ilícitas, com independência de qual seja a forma que essa massa adote, mediante a progressiva concessão à mesma de uma aparência de legalidade"(1), interessante se torna uma breve e sucinta análise de um dos métodos mais utilizados pelos agentes criminosos para a obtenção da meta optata relativa a esta espécie de delito socioeconômico, qual seja, a meta da reciclagem do dinheiro "sujo", com a sua posterior reintegração ao sistema financeiro.

Referimos a técnica ou método conhecido na América Latina como "pitufeo", ou ainda "smurfing" na linguagem dos norte-americanos. Consiste esta modalidade de lavagem de dinheiro em efetuar o agente criminoso vários depósitos fracionados em uma mesma ou em diversas contas bancárias, de um mesmo cliente ou ainda de diversos, sendo que, se somadas as quantias depositadas e pertencentes efetivamente a um só dono, se chegará à ilação de que o valor total representa uma quantia expressiva em dinheiro.

Dito de outra forma, consiste essa técnica na introdução de pequenas quantias em dinheiro através de casas de câmbio ou de transações bancárias, com o respectivo envio de mínimas quantidades em espécie a determinados lugares anteriormente escolhidos pelos criminosos, evitando-se assim, que tais operações sejam notórias e despertem a fiscalização bancária, visto tratar-se, em um contexto global, de um grande volume de dinheiro suspeito e fracionado.

Neste sentido, percebe-se que o lavador realiza numerosas transações bancárias, utilizando-se de pequenas quantias a serem depositadas, com o intuito óbvio de não despertar a atenção dos agentes financeiros, uma vez que tais depósitos fracionados, se analisados de forma individual, tendem a não ultrapassar o valor limite já pré-estabelecido pelos bancos. Buscando uma justificativa para a utilização do vocábulo dado a esta modalidade de lavagem de dinheiro, ou seja, smurfing, chegaremos à conclusão de que procede tal termo de alguns personagens em tamanho pequeno, na cor azul, conhecidos no mundo dos desenhos animados como smurfs e que em castelhano são denominados pitufos. Tais personagens são notadamente conhecidos pelas características de serem ágeis e extremamente trabalhadores. Assim, pitufo e smurf foram os apelidos dados aos agentes que praticam esta forma de delinqüência econômica, ao fracionarem depósitos de valores, os quais são remetidos para outros lugares, geralmente paraísos fiscais, a fim de se proceder ao distanciamento dos bens obtidos através da prática de delitos prévios, buscando como objetivo precípuo a ocultação da origem dos mesmos.

Tal modalidade de lavagem de dinheiro, embora rotineira no âmbito financeiro, encontra mérito junto ao meio criminoso por ser uma técnica de difícil constatação e apuração pelos agentes bancários ou outras autoridades imbuídas na tarefa de prevenção e combate à proliferação da reciclagem de capitais.

Por outro lado, não se pode olvidar que na dogmática penal moderna, face à crescente expansão do Direito Penal, predomina a idéia de que deverá, sempre que necessário, ser invocado o princípio da intervenção mínima, utilizando-se a esfera penal como ultima ratio, a fim de se evitar a atuação do ius puniendi estatal, no tocante a condutas que efetivamente não provoquem graves lesões aos bens jurídicos protegidos.

No caso do delito de lavagem de dinheiro, observa-se uma tendência em se distinguir entre a reciclagem de grandes quantidades de dinheiro ou outros bens e, ao contrário, a lavagem de pequenas ou médias quantidades desses mesmos capitais. Na visão do penalista espanhol Silva Sánchez, resta clara tal distinção, ao afirmar que "não seria razoável a sanção penal de qualquer conduta de utilização de pequenas ou médias quantidades de dinheiro negro na aquisição de bens ou retribuição de serviços. A tipificação do delito da lavagem de dinheiro é, enfim, uma manifestação de expansão razoável do Direito Penal (em seu núcleo, de alcance muito limitado) e de expansão irrazoável do mesmo (no resto das condutas, em relação às quais não se possa afirmar em absoluto que, de modo específico, lesionem a ordem econômica de modo penalmente relevante)"(2).

Fica então a dúvida, no sentido de que, se por um lado é crescente a utilização do fracionamento do dinheiro "sujo" (pitufeo ou smurfing) como forma de obtenção de êxito no complexo processo da lavagem de dinheiro; de outro, por razões de nítida aplicação de política criminal, necessária como forma de contenção ao desenfreado "crescimento" do Direito Penal, deverá ser invocado sempre que possível o princípio da intervenção mínima, no intuito de se incentivar a utilização inicial de outros meios de controle, sejam administrativos, civis, etc., para a prevenção e repressão da lavagem de quantias pequenas ou medianas. Assim, ficaria a priori, em tais casos, afastada de imediato a incidência de sanções de natureza penal.

Em síntese, fica claro que os lavadores de dinheiro, que operam utilizando-se de tal método de fracionamento do capital, visam a aproveitar-se dessas operações para evitarem a aplicação de controles administrativos ou penais. Destarte, em determinadas situações, o reconhecimento do princípio da intervenção mínima, com relação aos pequenos depósitos ou irrisórias transferências bancárias, poderia servir como incentivo à manutenção dessa odiosa prática criminosa.

Diante dessa aparente contradição, surge a necessidade dos operadores do Direito buscarem um efetivo e correto tratamento penal dessa forma de delinqüência denominada pitufeo ou smurfing. Ao nosso entender, mesmo em se tratando de várias e pequenas operações, com o fracionamento da quantia a ser lavada não haverá qualquer impedimento de ordem legal, no sentido de se valorar tais ações criminosas em seu conjunto, ou seja, de forma global. Melhor explicando, trata-se na hipótese, de um problema de distinção entre o mundo do "ser" e do "dever ser", uma vez que, ainda que sejam várias operações, devem ser consideradas pelo direito como uma só. Desde o ponto de vista das ciências naturais são muitas ou várias condutas mas, se analisarmos sob um plano normativo, verifica-se que trata-se de uma só, passível de enquadramento na figura dogmática prevista no art. 71 do Código Penal brasileiro, em razão de tratar-se de nítida hipótese de continuidade delitiva.

Seria então correta a aplicação, nos casos comprovados de operações de pitufeo ou smurfing, da ficção jurídica denominada crime continuado, na qual se aplica a regra de que muitas condutas se consideram como uma só, para efeito de processamento perante o Direito Penal. Comentando a origem de tal instituto, aduz Edmundo Oliveira: "Este instituto é uma construção dos práticos medievais. No início da era moderna, o jurista italiano Prospero Farinácio (famoso defensor da romana Beatriz Cenci, celebrada em peça de Gonçalves Dias) sistematizou o regime do crime continuado. Tratando de furto, sustentou que há um só crime, que não vários, quando alguém subtrai do mesmo lugar, em tempos diversos, mas continuados e sucessivos, uma ou mais coisas (quando quis est uno loco, tempore tamen diverso, sed continuato et successivo, unam rem sive plures furatur). No início do século XIX, Anselm von Feuerbach, notabilizado por haver abolido a tortura na Baviera, introduziu no Código bávaro a figura do crime continuado. Em 1853, o Código da Toscana deu ao crime continuado a formulação daí por diante adotada com ligeiras variações, nos códigos modernos"(3). Assim, no Direito Penal moderno, cumpridos os requisitos exigidos por lei para a configuração do crime continuado (prática de dois ou mais delitos da mesma espécie, mesmas condições de tempo, de lugar e ainda, idêntico modus operandi), estaria o agente criminoso em condições de responder pela prática do delito de lavagem de dinheiro, previsto no sistema penal brasileiro na Lei nº 9.613/98, na forma do concurso de crimes conhecido como continuidade delitiva, com aplicação da pena de um só dos crimes, aumentada de um sexto (1/6) a um terço (1/3).

Acerca da compatibilidade entre o crime continuado e a lavagem de dinheiro, destacam-se os ensinamentos de Palma Herrera, no sentido de que "podrá hablarse, por tanto, de delito continuado de blanqueo en aquellos casos en los que se realicen diversos actos de blanqueo que formen parte de operaciones distintas y tengan por objeto bienes distintos, siempre que esas operaciones se encuentren vinculadas entre sí desde el punto de vista subjetivo como consecuencia de la identidad o semejanza de las circunstancias externas que impulsan al sujeto a actuar, o de la existencia de un plano previo"(4).

Embora seja majoritária a corrente, por exemplo na Espanha, que aceita a compatibilidade entre a lavagem de dinheiro e o crime continuado(5), podemos perceber que tal situação é contestada no âmbito da doutrina norteamericana, conforme defendem Chang e Herscowitz, que consideram que, na hipótese de um sujeito dividir um milhão de dólares em dez transferências bancárias de 100.000 por dez sucursais bancarias distintas, estaria cometendo, em um só dia, dez delitos de lavagem de dinheiro(6). Tal solução não nos parece adequada, denotando nítida aparência de um direito penal máximo, inconcebível nos dias atuais.

Assim, a não aceitação da figura da continuidade delitiva no tocante ao crime de lavagem de dinheiro, levaria ao absurdo de o agente ter que responder por tantas quantas fossem as transferências bancárias realizadas na forma de fracionamento, fugindo, pois, do objetivo buscado pelo art. 71 do Código Penal brasileiro, qual seja, evitar o castigo autônomo destes tantos delitos de lavagem de dinheiro.

Por todo o exposto nesta singela abordagem, concluímos ser este o melhor e mais acertado tratamento penal a ser adotado, quando da utilização do método do fracionamento como forma de prática do delito de lavagem de dinheiro. 

Artigo originalmente publicado no site do http://flaviocardosopereira.com.br/

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