Recebi do competente advogado na bela Ilha de São Luís, Miguel Mussalem, uma noticia curiosa sobre uma avó que conseguiu autorização judicial, na Inglaterra, para gestar o embrião concebido deixado pela filha já falecida (http://g1.globo.com/…/mulher-de-60-anos-vence-batalha-na-ju…).
A situação é deveras curiosa e põe em evidência a relevância da filiação para certas pessoas. Ser pai/mãe é desejo de tal magnitude para alguns que, em última análise, justifica, até, a própria existência terrena.
Ter um filho, cuidar de seus primeiros momentos, ainda indefeso, acompanhar o seu crescimento, vê-lo alçar voos, como diz Djavan, isso pra mim é viver. Aliás, por falar em voos, o saudoso e sensível RUBEM ALVES (em sua A grande arte de ser feliz) narra como havia assistido ao primeiro voo de filhotes de pássaro que nasceram em seu jardim: "os filhotes já sabiam voar. Menos um. Tentou o voo. Fracassou. Caiu no chão. Pai e mãe, o pai num galho da árvore, a mãe no ninho, piavam. Acho que eles estavam dizendo: vamos! Tente de novo! Você pode! O filhote tentou de novo. Bateu as asas voou até o galho onde se encontrava o pai. Do galho, voou para o ninho, onde estava a mãe." E arrematou percebendo que "filhos são como flechas (disparadas pelos pais) que se transformam em pássaros".
E isso vem de priscas eras. O caso me lembrou um importante relato bíblico – que, aliás, terminou por ser o nascedouro do conflito que perdura há milênios entre judeus e muçulmanos. Trata-se da história de Sara, esposa de Abraão, que, já idosa (com 90 anos), tinha o desejo de ser mãe. Então, seguindo um costume da época, permitiu que seu marido engravidasse a serva Agar, que funcionaria como mãe substituta para o filho do casal. No entanto, demonstrando que não há limites intransponíveis para Deus, Sara, um ano depois, também engravidou e deu à luz o segundo filho de Abraão.
Esta é, por certo, a primeira gestação por substituição da história da humanidade. E, como se vê, de lá para cá, não mudou a vontade de certas pessoas de vivenciar a paternidade/maternidade e, por isso, vem se admitindo a gestação por substituição, também chamada de gestação por outrem (ou em útero alheio).
Em nosso país, a recente Resolução 2.121/15 do Conselho Federal de Medicina regulamenta a matéria, autorizando a realização de procedimento médico de gestação por outrem. Para tanto, exige-se como requisitos: a) comprovação da impossibilidade de gestar das pessoas interessadas (ou seja, que se trate de pessoa estéril ou de casal homoafetivo, por exemplo); b) que exista uma relação familiar entre a pessoa interessada e a mãe hospedeira (se não forem da mesma família, exige-se autorização prévia do Conselho de Medicina local); c) gratuidade, não sendo possível remuneração pelo gesto altruístico. Assim, a expressão "barriga de aluguel" (consagrada por uma novela global) se mostra imprópria pela impossibilidade remuneratória. Tecnicamente, o correto seria "barriga de comodato" (que é empréstimo gratuito de bem infungível).
Nesse ponto, é necessário ampliar a visão para uma questão que pode, por via oblíqua, impor mudança nesse tema. É que a Lei 11.804/08 garante o direito à percepção de alimentos pela gestante, durante a gestação. Assim, conquanto não possa ser remunerada, a mãe hospedeira fará jus ao recebimento de pensão, a ser paga pelo pai, pelo período gestacional.
Para além disso, existem indagações éticas relevantes na gestação por substituição.
No caso inglês, a avó obteve autorização judicial para gestar o embrião deixado pela falecida filha, porque havia inequívoca manifestação de vontade, externando o desejo de ser mãe. A relação maternal, assim, é estabelecida com a genitora-falecida, sendo a hospedeira, meramente, avó, e não mãe. Mas, poderia a mãe hospedeira reivindicar a maternidade do filho? Com base na normatividade brasileira, realizado regularmente o procedimento, o filho será registrado em nome dos PAIS (biológicos ou afetivos), e não em nome da gestante-substituta.
A outro giro, poderiam todos os interessados simplesmente negar o interesse pela criança? Seria possível que, todos os interessados negando interesse, se encaminhe o menor ao parto anônimo, nos moldes do art. 13 do ECA?
Noutra perspectiva, se a mãe hospedeira sofrer intercorrências decorrentes do parto, como, por exemplo, danos estéticos, poderia cobrar o prejuízo dos pais da criança, interessados na gestação?
São questões de alta envergadura ética, estando a reclamar uma solução cuidadosa, com o propósito de não inviabilizar o uso da técnica, mas, ao mesmo tempo, garantir um tratamento ético para todos os envolvidos. Tenho tratado dessas questões tanto nas aulas do CERS, quanto na edição atualizada de nosso volume Famílias do Curso de Direito Civil (Editora Juspodivm).
Exorto todos a começar a semana com essas reflexões, mas à luz da ideia de ALTERIDADE, olhando o outro, inclusivamente, sem impor ideias e respeitando as diferenças de perspectivas humanas. Afinal de contas, como disse FERNANDO PESSOA, pelas letras de ALBERTO CAEIRO, um dos seus pseudônimos, representativos de diferentes modos de ver o mundo, "procuro me despir do que aprendi, procuro me esquecer do modo de lembrar que me ensinaram e raspar a tinta com que me pintaram os sentidos".
Para se aprofundar:
CURSO PREPARATÓRIO PARA CARREIRA JURÍDICA – MÓDULOS I E II
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