Em meio ao dinâmico e complexo cotidiano, muitas informações e situações concretas terminam se perdendo, passando ao largo de nossa percepção. Por isso, agradeço a arguta percepção, a atenção e o carinho de duas pessoas admiráveis: ao amigo Danilo Fernandes Christófaro (competente jurista, com sensibilidade quase jornalística, que eficientemente assessora o amigo Rogério Sanches) e à jovem e talentosa Karen Kuentzer (que, desde cedo, revela uma vocação literária e acadêmica, com promissora carreira jurídica).
Faço absoluta questão dessa referência elogiosa porque, em meio às turbulências da vida atual, as pessoas criaram o hábito de somente criticar, disparar deméritos. Raro, em nossos dias, é elogiar, aplaudir, alguém. Ambos, com esmerado cuidado (ao qual expresso agradecimento), me enviaram a inusitada publicação, veiculada na imprensa, sobre uma relação amorosa entre mãe e filho, que carecem de autorização judicial para reconhecimento de efeitos jurídicos do ato. (link: http://www.dailymail.co.uk/…/Mother-36-son-19-fell-love-met… ou http://goo.gl/lwUgwn)
Como se vê da notícia originalmente publicada no britânico Daily Mail, mãe e filho, no México, já estão a se relacionar afetivamente (não se poderia reduzir a situação, tão somente, ao elemento sexual) há alguns anos. Agora, pretendem ver reconhecida a natureza familiar da relação, afastando os efeitos da ilicitude. O caso repete situação detectada na Alemanha, na Espanha e, recentemente, no interior de São Paulo.
No caso brasileiro, um casal, depois de 14 anos de matrimônio e com 4 filhos, descobriu que são irmãos. Igualmente, instalou-se discussão acerca do enquadramento da relação, ou não, no campo familiar. A situação conduz, primacialmente, à lei originária da relação social, que é a proibição do incesto. Em diferentes prismas do saber (Psicologia, Sociologia, Antropologia, Direito…), prevalece, sem controvérsias, a proibição do incesto como lei fundamental da convivência social. Motivos eugênicos, biológicos, sociais e culturais se unem para assegurar que se trata de norma legal razoável e justificável.
A regra é clara! E a regra é válida, plausível.
Como não lembrar da mitologia grega e do Complexo de Édipo, criativamente narrado por Sófocles, em Édipo Rei, na sua Trilogia Tebana? Efeitos deletérios decorrentes da relação afetiva entre mãe e filho que se projetam sobre as pessoas e sobre a própria sociedade.
Perfilhado nessa regra, o Código Civil do Brasil, no art. 1.521, proíbe o casamento entre pais e filhos, relutando nulo o ato, privado de qualquer efeito. A norma louva-se, a toda evidência, na preservação da família – o que justifica proibir o incesto.
A partir da colaboração de Herbert Hart, porém, vem se estudando que toda norma jurídica conteria uma espécie de cláusula implícita, advertindo "a menos que". Isto é, a norma (que foi editada a partir de uma determinada perspectiva social) prevê uma conduta que deve ser cumprida, a menos que sobrevenha uma situação de absoluta excepcionalidade. Um verdadeiro aborto da natureza! Algo tão inusitado, imponderável, que não tenha passado pela previsibilidade legislativa, quando da elaboração da norma.
É o que os ianques chamaram de "defeseability" e que mereceu tradução jurídica como DERROTABILIDADE ou SUPERABILIDADE DAS REGRAS. Tenho tratado desse tema, com certo pioneirismo, em nosso CURSO DE DIREITO CIVIL (www.editorajuspodivm.com.br) e nas aulas do CERS (www.cers.com.br). Ainda não foi objeto de indagação em concursos públicos, mas a escola da vida já está a desafiar o jurista, como no caso noticiado.
O Professor espanhol Manuel Atienza, de Alicante, denomina o fenômeno de "caso trágico", asseverando que a sua excepcionalidade é tanta que significa uma tragédia para o sistema jurídico. Por isso, não se resolve por regras ou princípios. Seria o caso de respeitar a força da vida (que, insisto, é maior do que o Direito) e dos fatos cotidianos, que não obedecem a prévios controles de validade da norma jurídica. Seria, mal comparando (é verdade!), o refrão do samba popular que diz "deixa a vida levar".
A solução, portanto, deve ser reconhecer que, por mais válida e razoável que se mostre uma norma jurídica, podem se apresentar casos tão imponderáveis (trágicos!) que exijam a sua relativização, casuística e episódica, para proteger o próprio fundamento axiológico da norma. Há uma absoluta lógica nisso: é que não se pode "predizer o futuro", usando a expressão do italiano Antonio Gramsci, na medida em que "tudo pode acontecer, mas não é possível saber ou fazer nada com certeza".
Nesse caso, considerando que a família já está formada (no caso brasileiro, inclusive, o casal já tinha 4 filhos, depois de 14 anos de convivência), decretar a nulidade do casamento é violar a proteção familiar. Não significa admitir o incesto! Não!!! A proibição do incesto é norma jurídica válida e razoável, harmônica com a proteção (constitucional) da família. Apenas significa preservar a proteção em situação jamais imaginada pela própria norma, quando de sua elaboração. Seria como dizer, se fosse possível imaginar a situação, o legislador teria acrescido um parágrafo único ao dispositivo legal, afirmando "se mãe e filho, ou irmãos, se conhecem e se tratam como marido e mulher, convivendo há algum tempo, inclusive tendo eventual prole, não se aplica a regra geral, para proteger a família". Uma espécie de "a menos que".
Lembro que Michel Foucault, de há muito, afirmava que as interdições (proibições) sociais, como a vedação ao incesto, precisam estar atentas à vida real, não podendo se apresentar apenas como meras "velhas formas de interdição". O Direito não pode, enfim, pretender limitar as possibilidades da vida. Vida é bem mais do que o Direito. Por isso, o jurista não pode se encapsular. Se o Direito imita a vida, posso dizer que "é uma caixinha de surpresas".
Para se aprofundar:
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